26 junho 2009

Maria Madalena

Reina agora o silêncio. E a penumbra. E a solidão. E o nojo. E a inércia…
Reina agora, como antes, o sabor salgado dos suores moles e lânguidos de um Verão que o não é, dos corpos desnudos e ciosos de beijos e carícias que há muito anseiam sem alcançar. E os lábios, secos e gretados de desejos por cumprir, esboçam sorrisos cinzentos de perplexo vazio. E os filhos que dormem porque sim. Porque assim tem de ser. Porque esta não é a vida. Porque esta é a p*** alternativa que lhes resta… que lhes deixam restar…
No charco, tudo se mantém inalterável como num quadro de Van Gogh. Escuro. Frio. Mole. Azedo. Podre. Labutam almas descalças e nuas de vocábulos. Silenciosas e moles como relógios de Dali. Pelos longos corredores pálidos, semeiam-se traições e enredos dignos de novelas rocambolescas, de romances de um Kafka decrépito e insano.
Não chove lá fora. Mas chove incessantemente nos teus olhos cansados. Cansados dos silêncios. Pior! Da ausência de amor nas palavras que te dizem. Da ausência de verdade nos rosários que desfiam. Do vazio das frases vazias.
No charco não há vida. Há lodo! E nojo. E escuridão.
E os voos das aves.
E o coaxar das rãs!
E o calor invade cada espaço, cada gesto, cada poro aberto do teu corpo que se cumpre no momento em que abandonas o charco negro. E caem as pedras! Os abutres, Maria Madalena! Aves que rastejam e anseiam alimentar-se das verdadeiras aves livres que sabem e querem voar. Aves que aprisionam vontades, que sugam desejos e sorrisos, que devoram almas brancas para as escurecer.
Voa, Maria Madalena! Voa e vive! Perdoou-te Cristo. Hão-de perdoar-te também. Ou não… Que longe estão de ser perfeitas essas aves negras…
Não leva ninguém a mal. São todas infelizes. Todas incompletas.
Não recebes laivo algum de lábios!



Dina Cruz

Obrigada "Histórico-Filosóficas"

Foi com prazer e orgulho que recebi o prémio "Blog Pensador" do "Histórico-Filosóficas"! Obrigada, Sérgio.

04 junho 2009

Carlos Nejar, poeta e romancista, dramaturgo e crítico brasileiro afirmou, e passo a citar, “a escrita é uma necessidade física, urgente, de absorver a realidade e mudá-la. Assumir a responsabilidade de levar uma mensagem ao portador. E não importam os obstáculos do caminho, a mensagem chegará. Escrever é saber cortar e fazer explodir os silêncios”
Mas a escrita só é valida se tiver leitores!
A triste realidade é que a leitura, em termos genéricos, está marginalizada porque não dá tanto nas vistas como um automóvel de último modelo! Quando se fala de poesia, a situação agudiza-se, já que o texto exige um esforço que a maioria dos seres não está para lhe dispensar. Já Camões se queixava no século XVI, e passo a citar:

Enfim, não houve forte Capitão
Que não fosse também douto e ciente,
Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão somente.
Sem vergonha o não digo, que a razão
De algum não ser por versos excelente
É não se ver prezado verso e rima
Porque quem não sabe arte não na estima.

E continua na estrofe seguinte:

Mas o pior de tudo é que a ventura
Tão ásperos os fez e tão austeros,
Tão rudes e de engenho e tão remisso,
Que a minutos lhe dá pouco ou nada disso.
Os Lusíadas, Canto V

Lamentável é que assim seja, pois o poema é uma pérola da essência humana, que cada vez é menos valorizada e cada vez mais precisa de ser compreendida entronizada.
No dizer de Carlos Nejar, a poesia é uma solidão que deu certo. Uma solidão activa e militante. Porque a solidão é cósmica. E a solidão não acaba nunca.
Poesia prende-se, pois, com pureza original, com uma visão depuradora do mundo imundo em que vivemos. O poeta tem o dever de denunciar as injustiças e atrocidades sociais; tem obrigação de contribuir para a cura da cegueira em que se move erraticamente a humanidade, de acordo com o que Torga escreveu: o poeta é como um farol. Dá chicotadas de luz na escuridão.
O poeta tem o direito de ser livre. Só assim pode ser isento na visão que transmite quando escreve; só em liberdade pode assumir o compromisso da luta por um mundo melhor e mais justo.
A poesia, através das eras, tem sido a arma mais resistente e persistente numa luta sem sangue, mas com ideias que têm provocado profundas e amplas transformações de mentalidades. Mas há ainda muito para fazer…
Carlos Nejar, de novo, afirma que a poesia é a arte da mudança. Recusa amarras ou prisões.
Foi com muito agrado e com justificada curiosidade que recebi e fiz a minha leitura do livro elementos, da autoria de Dina Cruz e de Nuno Monteiro.
Não se pretende com este trabalho apresentar uma análise científica, nem tão pouco uma crítica literária academicista que seria forçosamente castradora dos sentidos intrínsecos do poema.
Cada poema é uma pérola na sua integridade desafiante que se mostra e nos fascina porque é assim, tal qual se mostra, assumindo um brilho novo sempre que se muda o ângulo de visão.
É por isso que não se pode impor uma leitura, sob pena de reduzir uma obra de arte a um arquétipo frio, desnudo, inerte, inútil.
A sensação de belo deve pertencer a quem frui o poema, lendo-o, saboreando as vogais e as consoantes e as aliterações e as assonâncias e os ritmos e as insinuações e a vida que pulsa no poema sempre que temos a alma disponível para conversar com ele. Sim porque o poema é um ser vivo, mas preguiçoso, expressamente preguiçoso…o que ele pretende, sem o dizer, é que nos apercebamos de que ele existe, mesmo para além de nós; o que ele pretende é que lhe prestemos atenção, ora respeitadora, ora ousada, virando-o do avesso, se necessário for, para que consigamos deslumbrar-nos com aquilo que subjaz às palavras e até com a cumplicidade que entre elas existe.
Um poema é as palavras a falarem umas com as outras, mostrando aquilo que ocultam e ocultando aquilo que mostram; as palavras que, juntas, se carregam de sentidos e de memórias que nos fazem ver o invisível; as palavras que, num festival de magia, nos revelam mundos, vivências, emoções que nos fascinam e nos alertam para uma realidade renovada.

Abordagem da obra:

O título: em qualquer obra o título é muito importante e pode assumir-se, muitas vezes, como o responsável pela atracção ou repulsa em relação ao livro. Também é verdade que há títulos que não deveriam ter livro e livros que não precisam de título. A novela menina e moça faz esquecer o título saudades.
O título pode remeter para o espaço onde decorre a acção: Viagens na minha terra; a Cidade e as Serras; Mau tempo no Canal. Pode remeter para o tempo da acção: 1984, de George Orwell. Pode condensar o assunto da obra: Amor de Perdição. Pode referir a personagem principal: Eurico o presbítero; os Maias; Os Lusíadas. Pode ser simbólico: Felizmente há luar!
Elementos, pois é certo que se trata de poesia elemental. Quase todos os poemas apresentam explicitamente um dos quatro elementos essenciais. O próprio subtítulo de cada uma das partes para isso remete: Terra de mim, escreve a Dina; o fogo e a água, regista o Nuno. Não falta o ar!
Comecemos pela referência à poesia da Dina:
Trata-se de uma poesia de carácter intimista, com o sujeito poético a auto-analisar-se e a exteriorizar o que lhe vai na alma. É uma poesia dos sentidos e das sensações. Tal como Orfeu desceu aos infernos para recuperar a sua amada, Eurídice, a poetisa desce ao mais fundo de si em busca da poesia: desço ao fundo de mim/e arrumo/em pensamentos desordenados/as vivências impolutas/Dos acasos propositados.
Por vezes fica angustiada, envergonhada, com o que encontra: em mim/mergulhei/profundamente/…/no armário das vergonhas/descobri/sorrisos secos/…abraços amargos/…/estilhaços/retalhos/pecados de mim.
Poesia do eu que se procura, se analisa, se expõe numa simbiose marcante com o tempo, o espaço, os elementos.
Mas também poesia do onírico que leva o poeta até imprevisíveis limites, passando “além do Bojador”, penosamente , para conquistar/as nuvens/o céu/o sol.
Poesia arrancada à solidão e à escuridão, ambientes propícios à criação: Só/na escuridão/no silêncio/…/só/no plaino frio/…/no segredo das batalhas que travo em mim e levam à consciencialização da necessidade de intervir socialmente, gritando: fraco é o sol/que não aquece/…fraca é a palavra/que soa alto/mas não se faz ouvir/…/mas não se quer ouvir…
Poesia, ora eufórica, quando escreve: E há música/e cores/ e vida/em mim…ora assumindo um pendor disfórico, um acentuado desencanto: Houvesse estrelas na noite/e teríamos esperança no futuro. Tal como na vida das gentes, altos e baixos; luz e trevas ocupam, à vez, a alma da poetisa: Dias há/em que esvoaçam/em mim/borboletas de luz/…/noutros/corvos soturnos/ me cegam de negro.
A magia da família, a esperança colocada num nome de criança ressaltam como lenitivos para as angústias do dia-a-dia atribulado: Maria: Trazes a madrugada nos olhos/ e a claridade da lua na tua voz; ou Beatriz: És quem/num beijo/me enche de arco-íris ou Porto de Abrigo: É no teu olhar/que me escondo/que me aqueço/que me abrigo/…/é em ti/meu porto
O arranjo gráfico dos textos privilegia a verticalidade, onde as estrofes heteromórficas, com versos heterométricos, extravasam o tumulto interior de quem, descendo ao mais fundo de si, encontra profundas dissonâncias.
A frequente ausência de pontuação favorece a pluralidade/liberdade, mas também a responsabilidade de leituras, ao mesmo tempo que aproxima a linguagem do pensamento e das emoções. Por outro lado, pode ser entendida como a obsessão de preservar a unidade que a pontuação não favorecece.
Enquanto que os poemas da Dina evidenciam uma preocupação com o interior do sujeito poético, exteriorizando-o, os poemas do Nuno mostram uma grande preocupação com a realidade exterior, que o poeta interioriza e sobre a qual reflecte. É como um arauto dos gritos da Natureza, mas também do Homem, das suas grandezas e das suas misérias.
Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo.
Estas afirmações de Sophia de Mello Breyner Andresen podem verificar-se nos poemas do Nuno quando escreve: Canto/a beleza do bater das asas/as ondas do mar/…/o raio de luz/…a terra inteira de quem tu és filha.
O poeta ora se mostra fascinado com a beleza do mundo, escrevendo: dentro de ti/descubro os heróis do vento que te impelem por esse mar/os dourados faróis por onde navegas/as frágeis noites/ e as cálidas madrugadas; ora se sente desencantado com o comportamento humano, lamentando-se: os homens julgam-se donos de tudo/até das estrelas; ora se mostra desolado com a actualidade violenta dos desempregados, denunciando: Foi um alvoroço/quando lá entrou o demónio/e lhe disse que já não tinha emprego/ A mulher chorou/os amigos fugiram/e entretanto chegou a fome/nos olhos baços das crianças. É certo Sophia, Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. O poeta angustia-se com as injustiças comportamentais de uma sociedade decadente, degenerada, que não trata dignamente nem as crianças nem os idosos: Até quando/ Chorarão as pedras pelos pobres meninos arrastados pelo gelo/ou verter-se-ão as águas pelos infames futuros dos nossos velhos ao abandono.
O poeta canta também a Solidariedade e o Amor cósmico: cheguei de noite e bati à porta tão ao de leve/como um sussurro ou uma paleta de sons saídos da floresta/…/O homem da casa ergueu a taça e cortou a broa/lendas de linho em cima da mesa e a porta aberta/ e tu que nos trazes?/…/Todas as flores do Alentejo!/os copos encheram-se com o vinho e/os miúdos de faces coradas/pegaram as flores e foram distribuí-las pelas outras casas.
A noite metafórica, símbolo do desconhecido, assume uma importância criadora, genesíaca, reveladora. É no atro da noite escura que mais se sente a necessidade da luz, do conhecimento. É no seio da noite que começa a gerar-se a ânsia de um novo dia, que deve ser vivido em pleno. Por isso o poeta escreve: Foi em meio da noite que finalmente compreendeu/que é impossível viver sem olhar/sem sentir/sem cheirar todos os aromas que vivem ao nosso lado. (Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem.)
Remata a obra com um apelo ao regresso à pureza original, ao mito do bom selvagem de que fala Jean Jacques Rousseau, o tal que “Deus criou e pôs num paraíso de delícias; voltou a criá-lo a sociedade e pô-lo num inferno de tolices”, parafraseando Garret em Viagens na minha terra. Escreve, pois, o poeta: Cospe toda a parcimónia e avizinha-te de mim/…/despe-te Rosa e juntos / caminharemos pela aurora do outro mundo/seremos bandidos e proscritos vivendo das raízes e das folhas/…/regurgitaremos da vida tudo quanto não importe / e dormirás ao relento bebendo estrelas e engolindo mundos.
Concluo, dizendo que a poesia da Dina exterioriza o seu interior em intensos poemas, marcados pela verticalidade, de ritmo rápido e sentido.
A poesia do Nuno interioriza o exterior que derrama depois em poemas mais extensos, onde predomina a horizontalidade do verso longo, pensado, depois de sentido.
Estamos perante poesia autêntica, pois os poetas expõem ideias e sentimentos, servindo-se de padrões formais que sobrevalorizam a sonoridade e alcançam a máxima intensidade expressiva num espaço mínimo. O discurso poético concentra-se numa série de signos e sinais linguísticos convencionais que abrangem vários níveis de significado.
De Elementos brota poesia autêntica, aquela que nunca fenece.
Cabe a cada leitor investir a sua quota-parte, no sentido de descodificar mensagens implícitas.