Espáduas brancas palpitantes: asas no exílio dum corpo. Os braços calhas cintilantes para o comboio da alma. E os olhos emigrantes no navio da pálpebra encalhado em renúncia ou cobardia. Por vezes fêmea. Por vezes monja. Conforme a noite. Conforme o dia. Molusco. Esponja embebida num filtro de magia. Aranha deouro presa na teia dos seus ardis. E aos pés um coração de louça quebrado em jogos infantis.
Natália Correia
Recusa das imagens evidentes
Rosa que só tens nexo Fora da tua imagem: Aqui és só reflexo Do universo unido No instante florido Que ofereces aos que te olham, Sem te ver, de passagem.
Natália Correia
Do sentimento trágico da vida
Não há revolta no homem que se revolta calçado. O que nele se revolta é apenas um bocado que dentro fica agarrado à tábua da teoria.
Aquilo que nele mente e parte em filosofia é porventura a semente do fruto que nele nasce e a sede não lhe alivia.
Revolta é ter-se nascido sem descobrir o sentido do que nos há-de matar.
Rebeldia é o que põe na nossa mão um punhal para vibrar naquela morte que nos mata devagar.
E só depois de informado só depois de esclarecido rebelde nu e deitado ironia de saber o que só então se sabe e não se pode contar.
Natália Correia
Queixa das almas jovens censuradas
Dão-nos um lírio e um canivete e uma alma para ir à escola mais um letreiro que promete raízes, hastes e corola
Dão-nos um mapa imaginário que tem a forma de uma cidade mais um relógio e um calendário onde não vem a nossa idade
Dão-nos a honra de manequim para dar corda à nossa ausência. Dão-nos um prémio de ser assim sem pecado e sem inocência
Dão-nos um barco e um chapéu para tirarmos o retrato Dão-nos bilhetes para o céu levado à cena num teatro
Penteiam-nos os crâneos ermos com as cabeleiras das avós para jamais nos parecermos connosco quando estamos sós
Dão-nos um bolo que é a história da nossa historia sem enredo e não nos soa na memória outra palavra que o medo
Temos fantasmas tão educados que adormecemos no seu ombro somos vazios despovoados de personagens de assombro
Dão-nos a capa do evangelho e um pacote de tabaco dão-nos um pente e um espelho pra pentearmos um macaco
Dão-nos um cravo preso à cabeça e uma cabeça presa à cintura para que o corpo não pareça a forma da alma que o procura
Dão-nos um esquife feito de ferro com embutidos de diamante para organizar já o enterro do nosso corpo mais adiante
Dão-nos um nome e um jornal um avião e um violino mas não nos dão o animal que espeta os cornos no destino
Dão-nos marujos de papelão com carimbo no passaporte por isso a nossa dimensão não é a vida, nem é a morte
Natália Correia, in "O Nosso Amargo Cancioneiro"
Não ser
Ah! arrancar às carnes laceradas Seu mísero segredo de consciência! Ah! poder ser apenas florescência De astros em puras noites deslumbradas!
Ser nostálgico choupo ao entardecer, De ramos graves, plácidos, absortos Na mágica tarefa de viver!
Quem nos deu asas para andar de rastos? Quem nos deu olhos para ver os astros Sem nos dar braços para os alcançar?!...
Florbela Espanca
Tortura
Tirar dentro do peito a Emoção, A lúcida verdade, o Sentimento! -- E ser, depois de vir do coração, Um punhado de cinza esparso ao vento!...
Sonhar um verso de alto pensamento, E puro como um ritmo de oração! E ser, depois de vir do coração, O pó, o nada, o sonho dum momento...
São assim ocos, rudes, os meus versos: Rimas perdidas, vendavais dispersos, Com que eu iludo os outros, com que minto!
Quem me dera encontrar o verso puro, O verso altivo e forte, estranho e duro, Que dissesse, a chorar, isto que sinto!!
Florbela Espanca
Sonho que sou a Poetisa eleita, Aquela que diz tudo e tudo sabe, Que tem a inspiração pura e perfeita, Que reúne num verso a imensidade! Sonho que um verso meu tem claridade Para encher todo o mundo! E que deleita Mesmo aqueles que morrem de saudade! Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!
Florbela Espanca
19 maio 2009
Há no teu olhar Um não sei quê que me angustia
Há no teu olhar Um sabor agreste a dor e fel Que te não conhecia Há no teu olhar Um desalento austero Que se não desvanece no sorriso
Há no teu olhar Uma praia deserta de areais Uma montanha ausente de tojos e fragas Um pomar de laranjeiras por plantar
Há no teu olhar Uma ausência total de sentir Uma solidão repleta de desencontros Um silêncio cego de gritos abafados Um luto negro de passados por passar