15 outubro 2009

Vamos dormir, Mãe...


Porque sempre haverá meninos pendentes na beira da ponte deitando suas lágrimas ao vento, escrevo agora. Grito. Sufoco. Blasfemo. Escarneço.

Não estivessem as estrelas no céu na companhia da lua, e arrancaria de mim um grito de nojo, e cuspiria venenos sobre a boca pérfida dos despojados de vida, num urro! Num coice!

Mas há estrelas no céu… e luares lenitivos de camélia branca… E homens que são meninos de olhos esbugalhados e ânsias desmedidas e sonhos sonhados e por sonhar…

Mãe, sufragada de trabalho, ainda tenho que ouvir rugir esse incontrolável patronato…

Não chores, menino, as minhas lágrimas…
Lágrimas são dores, são flores, são pedaços d’alma que se evolam na distância dos olhares… são sorrisos húmidos com sabor a sal e sol… são do homem! São do Homem!
Sossega e dorme. Tens, no meu colo, todas as distâncias, todos os lugares, todas as estrelas do mundo… é meu colo, teu berço e teu segredo. Teu abrigo e teu desejado cárcere.
Sossega e dorme. Sonha.

E quando o vento tiver secado as lágrimas que choras e te alçares ao vento, será para voares em sonho alado de liberdade etérea.

O teu mundo não é esse teu patrão, Mãe! A tua vida não é a tua produção, Mãe!
Que não te arda o peito, a não ser por mim, Mãe.
Por ti, Mãe!
Por nós!

PORQUE:

A fábrica é uma pança gorda, mas é um meio.
A fábrica não é um fim.
A fábrica é uma ínfima parte… uma insignificante parte…
A fábrica morrerá de fome! Morrerá! De fome! Morrerá!

E tu, meu filho.
E eu, meu filho.
Um quarto. Um chão. Uma vela.
Um menino no berço. Um sorriso. Uma flor. Uma estrela.
O luar escancarado que entra pela janela e pela alma dentro.
Um beijo. Uma carícia.
Uma cantiga antiga relembrada e aquecida pela memória de infâncias olorosas de nuances doces e coloridas
Um cheiro quente de terra molhada que nos entra nos poros e nos enche os sentidos.
Uma gota de água a escorrer na vidraça. Uma lágrima-pétala a escorrer pela face.
Um sorriso doce a escorrer pelos lábios. Um amor infindo que escorre de mim e se espalha, pelo chão, à luz da vela, à tua luz, na tua luz…

Sombras trémulas de pequeninos fantasmas longínquos esvaem-se em finos fios de fumo fugaz! E tu… E eu…

Ergo os olhos para a montanha e oferece-se-me o horizonte claro e infindo de sonhos por cumprir… para cumprir!
Voarei! Voaremos sempre! Juntos! Voaremos enquanto deixarmos a luz irromper por nós dentro como a toada do gongo!

E posso tudo contra a faca que corta a morte… que corta de morte!
Porque sou mãe.
Porque sou mãe e guerrilheira!
Porque sou mãe e madrasta e amante e companheira e presa e predadora e abutre e gaivota e gume de adaga e língua de serpente e caixa-de-música e gongo retumbante e veneno mortal e antídoto secreto e mulher…
E mulher!
E mulher!
Que engana Deus e o Diabo!
Que cala dores de parto, de desvaire, de ciúme, de paixão, de orgasmo…
Que rasga caminhos por amores singulares, que se deita na areia da praia para ser beijada pelo sol ardente, que se despe de pudores para se deixar iluminar pela branca lua, que se abre inteira ao amor do seu homem, ao amor dos seus filhos, em absoluta entrega…

E que se esventra, se revolve, regurgita, escarra, espezinha, amachuca, esfaqueia, dilacera, escarnece, cospe, fulmina, destrói…

Ai de quem ousar macular esse quarto! Esse chão! Essa vela… Essa luz! Essa tua luz!

Então, Mãe… Vamos dormir?

Vamos, meu filho! Vamos, que é noite já.

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