16 janeiro 2009

Livro de Honra

Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.

Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.

Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!

Miguel Torga

14 janeiro 2009

Nem sempre sou igual


Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.

Mudo, mas não muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.

Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés -
O mesmo de sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma...

Alberto Caeiro

Sou um guardador de rebanhos


Sou um guardador de rebanhos.

O rebanho são os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e com os pés
E com o nariz e com a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

Alberto Caeiro

Para ser grande


Para ser grande, sê inteiro:

nada teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és no mínimo que fazes.
Assim em cada lago
a lua toda brilha,
porque alta vive.

Ricardo Reis

13 janeiro 2009

Vive



Viver é

abrir os olhos
e admirar a linha ténue do horizonte
estender as mãos
e deixar escapar, por entre os dedos,
a areia quente da praia
ouvir o clamor do mar
e adormecer com o murmúrio do vento
sentir o cheiro da terra molhada
e lavar a alma com a chuva que cai
beber cada raio de sol
cada gota de orvalho
cada instante
como se fosse o derradeiro

Dina Cruz

Gustav Klimt


Gustav Klimt nasceu em 14 Julho de 1862, em Baumgarten, perto de Viena. Foi o segundo de sete filhos de Ernst (no caso, o pai), cinzelador de metais preciosos, e de Anne Finster. Em 1876, Klimt ingressou na Escola de Artes e Ofícios de Viena, onde é aluno de Ferdinand Laufberger e de Julius Victor Berger até 1883. Juntou-se ao seu irmão, dois anos mais novo que Klimt, em 1877. Os dois desenhanhavam retratos, a partir de fotografias, vendendo-as a seis florins* cada um. Em 1879, Klimt, Ernest e o amigo Franz Matsch, também pintor, decoram o átriode Kunsthistorisches Museum. Só em 1880, as encomendas do trio sucedem-se: Quatro alegorias para o teto do Palácio Sturany em Viena. Teto do estabelecimento termal de Karlsbad na Tchecoslováquia.
O trio decora a Villa Hermès, em 1885, a partir dos desenhos de Hans Makart, retiro favorito da imperatriz Elisabeth. Em 1886, no Burgtheater, o estilo de Klimt começa a diferenciar-se do de seu irmão e do de Matsch, e então começa a se afastar do academismo. Cada um travalha por sua conta neste ano.
Então em 1888 Klimt recebe a Cruz de Ouro de Mérito Artístico das mãos do imperador Francisco José e em 1890 Klimt decora a grande escadaria de Kunsthistorisches Museum em Viena. Foi premiado pelo imperador (400 florins) pela obra que representa "A Sala do Antigo Burgtheater, Viena". Mas em 1892 seu pai faleceu, vitima de apoplexia*, da qual ele também será vitima. No mesmo ano, seu irmão Ernst morre também.
O ministro da Cultura recusa ratificar a sua nomeação como professor na Academia de Belas-Artes, em 1893. Contudo em 1894 Klimt é incumbido, com Matsch, da decoração da Aula Magna da Universidade.
Klimt recebeu em Antuérpia o grande prémio pela decoração do auditório do teatro do Castelo Esterházy em Totis, na Hungria, isso em 1895. Em 1897 acontece a revolta oficial: membro fundador do grupo dos secessionistas e Klimt acaba sendo eleito seu presidente. Então começa a passar os verões com a sua amiga Emile Flöge, em Kammer e na região de Attersee, onde pinta as primeiras paisagens.
Em 1898 Klimt tem sua primeira exposição da Secessão e fundação pelo grupo do periódico "Ver Sacrum".
Depois teve sua pintura, "A Filosofia", criticada por 87 professores da universidade, em 1900, que rejeitaram-na no momento em que descobriram ela na exposição da Secessão, e então recebe uma medalha de ouro na Exposição Universal de Paris. Um novo escandalo aparece em 1901, na exposição da Secessão. Desta vez são os deputados que interpelam o ministro da Educação a propósito da pintura "A Medicina".
Encontra Auguste Rodin, em 1902, no qual aplaude a pintura "O Friso Beethoven". Em 1903 visita as cidades Veneza, Ravena e Florença. No mesmo ano começa o "Período Dourado". Os painéis para a Aula Magna de Universidade são colocados na Österreichische Galerie. Klimt protesta. Só então houve uma retrospectiva de Klimt no Palácio da Secessão.
Em 1904 Klimt desenha os cartões para os mosaicos murais do Palácio Stoclet em Bruxelas que a Wiener Werkstätte executará.
1905, Klimt resgata ao ministro, os painéis para a Aula Magna. Ele e seus amigos abandonam, então, a Secessão. Logo, em 1907 encontra o jovem Egon Schiele. Pablo Picasso pinta nesse mesmo ano, o quadro "Les Demoiselles d'Avignon".
Expões 16 telas na Kunstschau em 1908. A Galeria de Arte Moderna compra "As Três Idades da Vida" e a Österreichische Staatsgalerie compra o quadro "O Beijo". Logo no ano seguinte (1909) começa a pintar o quadro "O Friso Stoclet". Então vai a Paris onde descobre com interesse a obra de Toulouse-Lautrec. Descobre também o fauvismo: Van Gogh, Munch, Toorop, Gauguin, Bonnard e Matisse, também expostos na Kunstschau.
Em 1910 participa com sucesso na 9ª Bienal de Veneza. E na Exposição Internacional de Roma, 1911, recebe o 1º premio com o quadro "A Vida e a Morte". Começa a viajar a Florença, Roma, Bruxelas, Londres e Madrid.
Em 1912 Klimt substitui por fundo azul (à maneira de Matisse) o fundo de ouro de "A Vida e a Morte". Em 1915 sua mãe morre. Klimt começa então, a usar cores sombrias e suas paisagens tendem para a monocromia. Então, a 1916 participa com Egon Schiele, Kokoschka e Faistauer na exposição do Bund Österreichische Künstler na Secessão de Berlim. Morre no mesmo ano Francisco José, dois anos antes do desmembramento do seu império.
Inicia "A Noiva" e "Adão e Eva". É eleito membro da Academia das Belas-Artes de Viena e de Munique.
A 6 de fevereiro de 1918, Klimt morre de apoplexia. Inúmeras telas ficaram inacabadas. A queda do império e o nacimento da Republica Alemã da Áustria e de seis Estados que daí resultam. Morrem no mesmo ano: Egon Schiele, Otto Wagner, Ferdinand Hodler e Koloman Moser.

05 janeiro 2009

Caverna de mim



Em mim

Mergulhei
Profundamente
Vertiginosamente

Perscrutei escombros
Violei segredos
Vislumbrei memórias
Ancestrais

Guardados
Arrecadados
No armário das vergonhas
Descobri
Sorrisos secos
Lágrimas inertes
Abraços amargos
Palavras vazias de significado
Beijos vazios de significante
Estilhaços
Retalhos
Pecados
De mim

Amargamente
Religiosamente
Fechei o sarcófago
Da múmia
Que se desfez

Que se fez

A cada sorriso
A cada lágrima
A cada abraço
A cada palavra
A cada gesto
A cada beijo
Que arremessei
Ausente
A cada um de vós

E segui
Verdadeira
Ao sabor do vento e das marés…

Dina Cruz

Afinal, no deserto, ainda há flores...

Dias há...




Dias há

Em que esvoaçam
Em mim
Borboletas tecidas de luz

Dias há
Em que laços de seda
Se me desatam
Suavemente
Na alma

Dias há
Em que todas as estrelas
Em que todas as brisas
Em que todas as gotas de chuva
São minhas

Noutros
Corvos soturnos
Me cegam de negro.

Dina Cruz

Palavras ocas




Fraco é o sol

Que não aquece

Fraco é o vento
Que sopra em vão

Fraca é a chuva
Que não mata a sede

Fraca é a lua
Que não ilumina

Fraco é o trovão
Que não ressoa

Fraca é a palavra
Que soa alto
Mas não se faz ouvir…
Mas não se quer ouvir…

Dina Cruz

Vós




Desço ao fundo dos vossos dias

E arrumo
Em pensamentos desordenados
As vivências impolutas
Dos vossos acasos propositados

É penoso
Não ter memórias
Não ter temores
Não ter insónias

É penoso
Não ter segredos
Não ter degredos
Não ter grinaldas de flores

É penoso
Ser um
E nenhum mesmo tempo

É penoso
Herdar propósitos inusitados
De retalhadas recordações

É penoso
Deambular pelos dias
Apagado
Pálido
Insosso
Aguado

É penoso não ser!!!

Dina Cruz

Tudo-Nada

Do ventre da terra
Nascem dias cinzentos
De escuridão e ausência
Solta-se o negro das almas
E escorrem
Das mãos
Os ódios e raivas do passado

É manhã!
E do cume dos montes
Resvala uma luz tépida e mole
De pretenso viço

Nada cresce
na aridez dos penhascos
Nada vive
Na solidez do monte
Nada se ilumina
Na solidão dos homens
Nada permanece
Na podridão dos dias!

Tudo perece…
Tudo fenece…

Dina Cruz

Dantes, as estrelas...




Dantes, as estrelas costumavam estar tão perto... Estavam a um estender de mão... À distância de um olhar, de um sorriso... Bastava abrir os olhos, ou mesmo sem os abrir, estavam ali... Sentia-as na pele como se sente o toque macio da brisa, no Verão, ao entardecer...
Era tão simples alcançá-las e arrumá-las todas dentro de mim, uma a uma...
Aqueciam-me por dentro e iluminavam cada momento dos meus dias, das minhas horas, boas ou más...
Era o tempo dos sonhos e dos sorrisos abertos e francos, de quem tudo espera, de quem tudo deseja, de quem confia tudo alcançar... mesmo as estrelas...
Era o tempo dos olhares limpos e claros como as gotas de chuva que escorriam na vidraça e que eu imaginava chorarem por não serem como eu – despida de lutos e tristezas, de desilusões e melancolias, de arrependimentos e angústias, de anseios ou sonhos por cumprir.
Agora não chove, mas, a maior parte do tempo, sinto essas gotas de chuva escorrerem, não na barreira transparente da vidraça, mas em mim... E arrefecem-me. E apagam a luz que as estrelas me ofereciam quando estavam perto... a um estender de mão... à distância de um olhar, de um sorriso...
Fecho os olhos. Abro os olhos. Volto a fechá-los, mas já não as sinto... já não estão ali...
E dentro de mim, a noite é escura e fria.
E fora de mim, a noite é escura e fria.
E o meu sorriso já não tem a franqueza dos sonhos, do amanhã ansiado, do poder de dar a volta ao mundo em cada gesto...
E o meu olhar já não alcança nada, para lá da vidraça...

Dina Cruz