29 abril 2011

Na berma dos dias...


Fechou os olhos secos de lágrimas e adormeceu na berma dos dias.


É assim que começa a morte.
É assim que se dá início à vida vazia de coisas grandiosas.
É assim que nos fazemos parte do rebanho, do bando, da multidão.
É assim que deixamos de nos pertencer.
É assim que alguém nos possui e nos encarcera a alma.
É assim que deixamos de ser gente a sério, com ideias e ideais, com pulsações e inquietudes, com revoltas e cansaços…
É assim que nos entregamos ao desaire e às anestesias dos outros… daninhos e corrosivos.
É assim que tornamos pálida, a fraca alma que deixámos de possuir e que entregámos a um demónio devastador e guloso de sonhos…

Fechou os olhos secos de lágrimas e adormeceu na berma dos dias.

Quantas vezes não acordou com o raiar da manhã e se entregou à frescura do orvalho num abraço fraterno com a Natureza?
Quantas vezes não se deixou embalar pelo vento fresco e lenitivo de uma tarde quente de verão, na loira seara?
Quantas vezes não se deixou emprenhar pelo cheiro quente da terra acabada de beber a água das primeiras chuvas?
Quantas vezes se ofereceu inteiro aos raios de luar em noites cristalinas e plenas de estrelas?
Quantas vezes ofereceu o seu doce sorriso às flores às árvores do bosque cerrado?

E agora…
Fechou os olhos secos de lágrimas e adormeceu na berma dos dias.

Fechou-se.
Encolheu-se.
Enrolou-se.
Apagou-se.
Fechou os olhos secos de lágrimas e adormeceu na berma dos dias.

Dina Cruz

Quatro paredes pintadas de rosa...

Era uma sala enorme de paredes rosa-pálido. Pálido. Como os dias que ali se arrastavam moles e desertos de sorrisos.

Nas inúmeras mesas individuais, escondiam-se rostos inertes em frente dos ecrans quadrangulares dos computadores abertos à dolência das manhãs e das tardes sonolentas… O tic-tic das pontas dos dedos tocando as teclas frias dos aparelhos lembrava melodias de cigarras e despertava vontade de cigarros.

Era uma repartição como tantas outras, onde alguns trabalhavam a metro, outros a milímetro… Ali se teciam novelos inenarráveis de papéis para reciclar. Relatórios de relatórios eram produzidos a uma velocidade estonteante de delírio. Grelhas e grelhas e grelhas eram preenchidas, sem dó nem piedade, com algarismos e dados que nasciam do tudo e do nada.

Uns atrás dos outros, em quatro filas quase intermináveis, os trabalhadores fixavam-se nas folhas brancas que se acumulavam em molhos por cima dos móveis repletos de documentos imberbes.

Era o caos organizado.

Era o delírio colectivo.

Era o tédio visceral.

Era o esquecimento da vida.

Era o sol que se vislumbrava no alto da sebe do pátio recto, empedrado, castrador…

E o tempo parado, atrasado, relapso…

E o fim do dia que não chegava nunca.

E os quinze minutos para um café sôfrego e nervoso.

E a rubrica na folha gasta de papel, à entrada e à saída. À entrada e à saída…

E a dor no fundo das costas. E a cabeça a estoirar. E os olhos a arder de cansaço. E o ar que faltava. E o alento que faltava. E a vontade que partira há muito…

Lá fora…

Lá fora o mundo!

O mundo todo numa folha de papel aberta às mais ansiadas aventuras e ilusões. E eram moinhos. E eram gigantes. E eram batalhas. E eram passeios abandonados em bosques com cheiro a água, a pedras e a rosmaninho. E eram bandos inteiros de andorinhas. E eram nuvens, cavalos, bisontes, girafas e leopardos. E eram meninos jogando à apanhada e às escondidas. E eram flores e frutos perfumados de polpa doce e sumarenta. E eram praias de areia branca e quente a perder de vista. E eram oceanos de profundo azul em espirais de espuma, água, sal e maresia. E eram ilhas perdidas sob o céu repletas de palmeiras. E eram noites de delírio e som e cores servidos em copos altos com guarda-sóis de papel. E eram danças, corpos nus e desvario à luz da lua e ao som do mar. ..


Dina Cruz