31 dezembro 2008

Nódoas


São 6h da madrugada. Toca o despertador. Levanta-se. Toma banho. Trata do pequeno-almoço. Chama o miúdo. Põe-lhe a roupa que escolheu na noite anterior e que ele tem de vestir (ou devia) em cima da cama. Acaba de se arranjar. Chama o miúdo que continua, ainda, na cama. Olha as horas que passam a correr. Ralha com o miúdo que só agora sai do ninho e se encaminha, irritantemente lento, para a casa-de-banho. Sorve de um trago o leite já frio. Volta ao quarto do miúdo, que vestiu as calças que já estavam para lavar e a camisola do dia anterior, paciência, ele lá sabe. E as horas correm. Enfia-lhe o casaco enquanto ele come, sem vontade, os cereais já moles. Sai de casa. Metem-se no carro. Atravessa a cidade em pânico porque já são quase horas de estar no emprego, mas deixa o miúdo mesmo à porta da escola porque está frio e pode adoecer. Despede-se com um “Até logo.”. E corre de novo até chegar, finalmente, ao local de trabalho.
O miúdo, na escola, atura impaciente e aborrecido um sem número de professores e disciplinas que lhe dizem muito pouco (ou nada). Desenha uns rabiscos na margem do caderno de Matemática. Combina, cúmplice, um almoço no Mac. Decide horas e pontos de encontro. Aponta o número do Zé numa folha amarrotada. Disfarça quando o professor pede para alguém ir ao quadro resolver a equação. Procura na mochila o CD que o Luís lhe pediu. Toca para a saída. Vai para o intervalo. Joga à bola. Troca Tazos. Conversa sobre o filme que esteve a ver, no dia anterior, até às quinhentas. Masca uma pastilha. Dá um empurrão ao colega. Entrega o CD ao Luís. Toca para a entrada. Sobe, molengão, as escadas. Entra na sala. Português – Que seca!!. A Rita tá muita gira! Manda-lhe um bilhete com um piropo de mau-gosto, que passa de mão-em-mão. Espera pela resposta que chega num insulto. O professor explica qualquer coisa sobre uma tal de Conjugação Pronominal, ou lá o que é. Cochicha umas coisas com o colega do lado. Toca para a saída. Acaba a aula – a última do dia. Porreiro!
Entra na sala. Poisa a pasta. Tira lá de dentro um sem número de livros e papéis, qual mágico da cartola. Abre o livro de ponto. Escreve o número da lição e a data no quadro. Espera, à porta, os alunos que teimam em tardar. Recebe-os com o sorriso de sempre e um bom-dia do fundo do coração. Olha-os, enquanto ocupam os seus lugares com a eterna esperança de conseguir abrir-lhes o horizonte e ajudá-los a ser, em cada aula. Escreve o sumário da aula que vai oferecer-lhes. Faz a síntese da aula anterior. Introduz o assunto da aula do dia. Explica. Volta a explicar. Decompõe. Troca por miúdos até já não ter mais moedas. Exemplifica. Exercita. Tira dúvidas. Repete-se. Repetem-no. Ignoram. Ignoram-no. Irrita-se. Tenta compreender. Ajuda. Dá apoio. Ensina (ou tenta ensinar): a sentar-se, a comportar-se, a agir, a aprender, a apreender, a raciocinar, a seleccionar, a resumir, a sintetizar, a aplicar, a ser... Grava, no livro de ponto, os pontos tratados ao longo de 90 minutos. Despede-se com o mesmo sorriso de sempre e um bom dia do fundo do coração. Sai da sala. Encaminha-se para a sala de professores. Senta-se. À volta da mesa discutem-se estratégias, métodos, conteúdos, dificuldades diagnosticadas, casos pontuais de alunos que se atrasam, que não vêm, que vêm, mas que não estão, da ausência de pré-requisitos, dos pré-requisitos de alunos ausentes, de pais mais ausentes ainda...
São cinco horas. Arruma a secretária. Sai do emprego. Exaspera-se no trânsito. Atravessa a cidade. Chega à porta da escola onde não tem lugar para estacionar. Coitado do Pedro, vai apanhar frio. Chega o miúdo. Entra no carro. Como correu o dia? Bem. Vai ao super-mercado. Compra umas coisas que faltam e um CD do Robbie Williams ao miúdo que nunca mais se cala. Chegam a casa. Adianta o jantar. Põe roupa a lavar. Lava a loiça do pequeno-almoço. Passa umas coisitas a ferro. Chama-os para jantar. Jantam.
Deixa a mochila à entrada da porta. Pendura o blusão na cadeira da sala. Atira as sapatilhas para ao pé da secretária. Liga a televisão. Estica-se na cama. Ouve o CD novo. Ò mãe! Traz-me um pão com fiambre! Já vou... Chega o pão. Não tens nada da escola para fazer? Já faço. Come o pão. Liga o computador e aterra num “Chat” qualquer onde tagarela com um tipo de Ourém. Vasculha, na mochila, o número do Zé. Marca um jogo para o Sábado seguinte. Desfolha a revista de motas à procura da próxima prenda de aniversário. A mãe chama para jantar. Senta-se à mesa. Começa a comer. Passa-me a salada. Serve-o. Não compraste Coca Cola. É sempre a mesma coisa. O jogo Porto - Sporting começa às nove. Termina a correr. Sai da mesa a meio da refeição. O jogo vai começar. Entra no quarto. Estica-se na cama. Vibra. Salta. Golooo!!! Rói as unhas. Intervalo. Ó mãe! Traz-me uma maçã! Já vou... Trinca a maçã. Já fizeste os trabalhos da escola? Já vou... Enerva-se. O árbitro é parvo, ou faz-se?!!!. 3-0 para o Porto. É sempre a mesma coisa!... Amanhã tem teste a Ciências. Tem sono. Que se lixe! Tive positiva no outro... – deitou-se às tantas no dia anterior. Deita-se. Dorme.
Levanta a mesa. Arruma a cozinha. Vê 20 minutos da novela. Discute a conta da água com o marido. Vai ao quarto do miúdo. Já dorme. Tapa-o. Arruma a roupa que ficou espalhada pelo quarto. Apaga o computador, a televisão e a luz. Encosta a porta. Veste o pijama. Põe o relógio a despertar. Deita-se. Esqueceu-se de tirar a roupa da máquina. Levanta-se. Tira a roupa da máquina. Mais um rol para passar a ferro no fim-de-semana. Volta a deitar-se. O Pedro não vai nada bem na escola. Não entendo. Ele tem tudo o que precisa para ser um bom aluno. Não deixamos que lhe falte nada. Deixa lá o garoto. Eu, com a idade dele, era igual... E se reprova? Ainda é novo. Deixa-o gozar a vida... Só reprovou uma vez... Tu lá sabes... Amanhã tens tempo de ir ao Banco? Só se for à hora de almoço. Pode ser. Deixo-te os papéis no móvel da entrada...
Sai da escola às 19h. Vai tirar fotocópias de umas fichas informativas. Chega a casa. Liga o computador. Tem de terminar a acta do Conselho de Turma. Escolhe, entre muitos, um texto para o teste. Elabora questões. Faz cotações e correcções, Planos Curriculares de Turma, Planificações adequadas e Específicas. Repensa estratégias. Analisa casos concretos de alunos abstractos. Planeia aulas. Calendariza apoios e testes. Come qualquer coisa. E o Pedro? Não sei o que se passa com o miúdo... Ele até tem capacidades... Não se interessa. Não estuda. Não liga nada. Hoje não esteve atento. Fartou-se de conversar com o colega, de passar bilhetes à Rita... Tem tudo o que quer sem fazer esforço nenhum... Que objectivos há-de ter? Tenho de ter uma conversa com ele, amanhã. Se calhar, é melhor dar-lhe apoio. Pode ser que resulte... Corrige doze testes de uma turma. Está cansado. Exausto. Desliga o computador. Arruma a pasta. Deita-se. Dá voltas à cama. À pedagogia. À vocação. À estratégia. Ao desempenho. Ao desempenho dos 98 alunos que tem. Ao aproveitamento do Zé, do Rui, da Joana, da Isabel... Ao comportamento do Pedro, do João, do Carlos, da Sónia... Adormece.

São 6h da madrugada. Toca o despertador. Levanta-se.
São 6h da madrugada. Toca o despertador. Levanta-se
São 8h da manhã. A mãe já chamou três vezes. Vira-se para o lado. Adormece de novo...

E é, infelizmente, assim. Muitos meninos são entregues à escola, qual casaco usado à lavandaria: cheio de vincos, dobras, quebras, nódoas, pó... E a escola que sacuda, areje, limpe, lave, tire manchas mais ou menos entranhadas, dê um pontinho onde for preciso, passe a ferro, engome e no-lo entregue novinho em folha, como acabado de vir da loja, sem odores nem vícios, sem mácula ou vinco que nos deixe ficar mal... Mas a lavandaria não faz milagres, se votamos ao esquecimento os casacos, no armário, uma estação inteirinha... Depois, há sempre nódoas que teimam em permanecer...

Dina Cruz

Despertar

Do ventre da terra
Abre-se em cores a Primavera

Despontam flores e odores
No âmago dos vales

Musgos e giestas
Inundam os penedos

E há música
E cores
E vida
Em mim

Dina Cruz

30 dezembro 2008

Douro

Subo a montanha
Com o vento nos braços
Como se carregasse nos ombros
Todo o peso dos dias

Ergo os olhos ao alto
E respiro, inerte,
A aragem agreste dos penhascos

Arrasto amarga
A solidez das fragas
Num movimento mole
De exaustão extrema

Arribo ao cume
Para conquistar
As nuvens
O céu
O sol
A arrebatadora miragem
Que vislumbro

Tudo é meu neste momento
Tudo é meu nesta hora
Tudo é meu
quando se me oferece
nesta dádiva generosa
de infinito azul…

Dina Cruz