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10 novembro 2009

Jogo da Macaca

Tocou o despertador. Seis e quarenta e cinco… Noite ainda. Escuridão no pequeno quarto. Sono. Preguiça. Dolência. Demasiada escuridão lá fora. Mais uma vez, não conseguira adiantar-se ao nascer-do-sol. O sol nascia sempre depois dela. A noite, essa, quando ela…
Demorou ainda. Encolheu-se e apreciou, mais um pouco, o torpor morno da cama larga. Sono agitado, turbulento, cansativo, desgastante… Olhos fechados, apenas… No escuro do quarto, as noites eram dias. Olhos fechados. Dias inteiros. E os dias, esses, por vezes noite. Saiu da cama, bela adormecida ainda.
Despiu, desajeitada, o pijama. Flores espalhadas pelo chão. Retalho ínfimo de Primavera…
Olhou de soslaio o espelho e parou por instantes. Olheiras. Eternas. Perpétuas. E rugas. Fininhas. Rugas.
A água caiu sobre o corpo ainda quente de cama e sono. Chuva tropical… Tépida cascata nos meandros da selva… Olhos fechados. O poder de fazer cessar a chuva e a torrente da cascata. Secou o corpo com o branco macio da toalha de algodão. Nuvem. Neve. Fumo. Neve no chão frio. Gotas de chuva nas costas. Um pomar de laranjeiras espalhado pelo corpo num gesto automático e inconsciente.
O espelho, de novo. Creme. Base. Rouge. Sombra. Eyeliner. Olheiras. Eternas. E rugas. Fininhas. Rugas. Uma por cada lágrima. Uma por cada sorriso. Uma por cada alegria. Uma por cada desgosto. Uma por cada aventura. Uma por cada amor. Cada uma dela. Todas dela… Ansiadas. Desejadas. Dela, todas.
Meias pretas. Vestido preto. Sapatos pretos. Baton. Casaco? Vermelho. Cravo. Papoila. Sangue. Rubi. Sangue. Vida.
Abriu e fechou a porta do frigorífico. Leite. Simples. Frio. De um gole. E café. Forte, curto, amargo. Saiu.
Acendeu o vermelho. Era para peões. Peças de xadrez em história aos quadradinhos. Verde. Calcou o acelerador. Seguiu. Acendeu um cigarro distraído e sorveu-o lentamente… De vidro aberto. O ruído da cidade lá fora. O rádio. Passou pelos lugares do costume. Deixou abandonado lugar de estacionamento habitual. Seguiu. Seguiu em frente. Alheia à cidade que fervilhava de cheiros, cores, ruídos… Em direcção ao mar…
O mar. Imenso azul. Misterioso. Infinito. Lar de sereias e monstros marinhos. Lendas. Mitos. Marinheiros e piratas. Castelos de areia. Melodias de búzios. Estrelas sem luz. Conchas. E o murmúrio embalador das ondas na areia macia da praia. E aquele cheiro salgado e fresco. O odor de terras longínquas e desconhecidas. De ilhas desertas. De glaciares montanhas brancas mundos de fadas e anjos… Sapatos pretos perdidos na areia. Os pés descalços na frescura das ondas. O sabor a sal nas mãos, nos lábios… O corpo enrolado numa vaga. A areia a picar-lhe a pele. Uma força a seduzi-la, a levá-la. E o sal a entrar-lhe na boca, nos olhos, nos poros da pele… Sabor de vida. Sabor de morte. Um turbilhão de histórias. De memórias. De desejos. De anseios. Lá atrás, a cidade que já não via nem ouvia. Só o mar… O mar e os seus pensamentos e toda a sua vida passada… Mais do que isso, silêncio… Um silêncio devastador, reparador, assustador, avassalador… No meio das vagas, do sal, do azul profundo…
Um ruído longínquo entrou-lhe, mansamente, pelos ouvidos. Um grito. Um choro. Um gemido. Um suspiro… Um som que a ergueu do meio das ondas e lhe secou a pele e as lágrimas de sal. Uma voz que a despertou daquele sonho negro e azul. E foi-se o sal, a água, a areia, o azul, o ruído monótono e seco da cidade.
- Mãe…
E o mundo inteiro a entrar-lhe pelo quarto dentro. Todos os raios de sol ali. Todas as fases da lua que era sua. O mar inteiro a refrescar-lhe a alma…
-Mãe…
Acolheu-a no pequeno jardim do seu pijama-Primavera de flores. Afagou-lhe o cabelo e beijou-a ternamente num abraço de sol e sal e mar e estrelas e aberto luar. E ficaram as duas enroscadas num beijo quente de fusão perfeita.
- Sim, meu amor…
- Ensinas-me a jogar à macaca, mãe?
-Ensino, amor. Se ainda me lembrar…
E no calor terno do ninho, jogaram as duas... Salto, salto, salto, volta, salto, salto…
Mar, ondas, espuma branca, areia macia, sal no corpo, nas mãos, nos lábios, nos olhos. Sal na vida. Sal da vida.
Salto, salto, salto, volta, salto, salto, volta…
Mulher menina. Menina mulher. Mulher menina mãe.

Dina Cruz

25 outubro 2009

Baobá mulher!


De África chegam-me vozes de terra e de calor… De tristeza e fome… de seca e de angústia… de sonho e solidão…

Baobá mulher chora de pena!
Chora de dor!
Chora de luto.
Do luto negro e fundo de quem perde, um a um, seus filhos, seus homens, seus irmãos…

Nas suas curvas tortas e retortas, esconde o medo e ânsia, a sanzala e o xicote, o suor e o velho tronco, o minino e o pó do terreiro, a carapinha e os búzios, o batuque e a catinga...
E oculta a força e a coragem.
Esconde a savana e seus leões…
E Alimenta!

O Pequeno Príncipe que não tema a baobá… O seu asteróide está seguro. No seu asteróide estará seguro.
A baobá não se dá longe da terra que é a sua, que é o seu leito e sua imensidão e seu túmulo…

É mágica a baobá mulher!
Lua de poetas e eremitas, habita neles em lendas e poemas de flores perenes, de folhas feiticeiras, de frutos curativos, de troncos vivos e húmidos, de elixires de juventude e de vida…

No meio da planície, espalha-se gorda e dolente pelo capim doirado… enrosca-se em contornos fantasmagóricos de cabeleira desalinhada pelo vento quente, espraia-se muda, entrega-se virgem, despede-se, ousada e desejada.

Numa noite à sua escolha, coberta por um lençol de brancas estrelas e sob a luz de uma lua opaca como leite, parirá!
Abrir-se-á de matizes e de aromas insondáveis. Explodirá de vida, em sufoco de saudade e de desejo.
E será flores...
Tantas flores quantas estrelas há no céu.
E virão beber-lhe o néctar nocturno, os seres mais escuros da savana,
os que, cegos, lhe sentiram, à distância o odor,
os que, surdos, lhe ouviram os gemidos e os ais,
os que mudos, quererão cantar-lhe a liberdade e a vastidão…

E, no mar que tem dentro do peito, deixará navegar o universo inteiro…
E matará a sede a quantos se aproximem.
E curará os males mais infames.
E será lira e batuque e ocarina…
E será colher e taça e alimento,
E será mãe e mulher e árvore
E será útero e colo e seio e ventre
E dança e tela e escultura e poesia…
Será como é... Será o que é... Baobá mulher!

Dina Cruz

26 junho 2009

Maria Madalena

Reina agora o silêncio. E a penumbra. E a solidão. E o nojo. E a inércia…
Reina agora, como antes, o sabor salgado dos suores moles e lânguidos de um Verão que o não é, dos corpos desnudos e ciosos de beijos e carícias que há muito anseiam sem alcançar. E os lábios, secos e gretados de desejos por cumprir, esboçam sorrisos cinzentos de perplexo vazio. E os filhos que dormem porque sim. Porque assim tem de ser. Porque esta não é a vida. Porque esta é a p*** alternativa que lhes resta… que lhes deixam restar…
No charco, tudo se mantém inalterável como num quadro de Van Gogh. Escuro. Frio. Mole. Azedo. Podre. Labutam almas descalças e nuas de vocábulos. Silenciosas e moles como relógios de Dali. Pelos longos corredores pálidos, semeiam-se traições e enredos dignos de novelas rocambolescas, de romances de um Kafka decrépito e insano.
Não chove lá fora. Mas chove incessantemente nos teus olhos cansados. Cansados dos silêncios. Pior! Da ausência de amor nas palavras que te dizem. Da ausência de verdade nos rosários que desfiam. Do vazio das frases vazias.
No charco não há vida. Há lodo! E nojo. E escuridão.
E os voos das aves.
E o coaxar das rãs!
E o calor invade cada espaço, cada gesto, cada poro aberto do teu corpo que se cumpre no momento em que abandonas o charco negro. E caem as pedras! Os abutres, Maria Madalena! Aves que rastejam e anseiam alimentar-se das verdadeiras aves livres que sabem e querem voar. Aves que aprisionam vontades, que sugam desejos e sorrisos, que devoram almas brancas para as escurecer.
Voa, Maria Madalena! Voa e vive! Perdoou-te Cristo. Hão-de perdoar-te também. Ou não… Que longe estão de ser perfeitas essas aves negras…
Não leva ninguém a mal. São todas infelizes. Todas incompletas.
Não recebes laivo algum de lábios!



Dina Cruz

16 fevereiro 2009

Há várias noites que não vejo a Lua

Há várias noites que não vejo a lua… ou porque a noite a esconde, ou porque eu cerro as cortinas e a não deixo entrar pela vidraça da janela do meu quarto.
Dantes, eu achava que a lua era a eterna companheira das noites… das minhas noites, pelo menos… Que sem ela, apenas o sol reinaria em toda a sua sumptuosidade… Pensava que havia sido ela que, para brilhar lá no alto, fizera a escuridão e o vazio da noite, para poder mostrar-se em todo o seu esplendor e volúpia.
Infantil engano o meu…
Descobri, há pouco, que afinal, há noites sem lua. Há noites em que o luar não ilumina o mundo, nem os meus pensamentos.
Descobri também, que apesar de não haver lua, eles continuam lá, os meus sonhos e os meus pensamentos, tal como quando aquela luz branca e opaca como uma camélia, me fazia pensar que os inspirava e fazia crescer e fervilhar na minha alma.
É mentirosa, a lua… Enganadora e sinuosa como uma estrada de montanha em que, ao menor descuido, nos mostra um despenhadeiro oculto onde nos afundamos num mergulho de azul e vazio… Ilumina-nos o olhar apenas para nos fazer sentir que é dona do mundo inteiro, mas descobrirmos, logo a seguir que, afinal, sem ela, tudo mantém o seu rumo eterno e constante, ainda que sem a sua mágica presença.
Hoje, é mais uma dessas noites em que no azul-escuro da noite ela não reina, nem espalha o seu mistério. Mais uma noite em que, olhando o céu através do olhar frio do dia que passou, me convenço de que ela não é o lugar oculto de segredos insondáveis e distantes que eu pensava que era, nem a quimera de poetas ou amantes. É, nada mais, nada menos, que mais um desses planetas distantes que sonhamos alcançar quando somos crianças cheias de sonhos, ou quando por momentos, nos deixamos sê-lo ainda, apesar do peso nos ombros e das marcas do tempo em redor dos olhos cansados…
Não sei se voltarei a vê-la ou a tê-la nos meus sonhos, ou na minha vidraça. Quem sabe… Talvez quando me permitir ser de novo menina de tenra idade em momentos de devaneio pueril, ou quando precisar dela para iluminar alguma história de encantar.
À parte isso, as noites são todas iguais: escuras, frias e cheias de silêncios.

Dina Cruz

05 janeiro 2009

Dantes, as estrelas...




Dantes, as estrelas costumavam estar tão perto... Estavam a um estender de mão... À distância de um olhar, de um sorriso... Bastava abrir os olhos, ou mesmo sem os abrir, estavam ali... Sentia-as na pele como se sente o toque macio da brisa, no Verão, ao entardecer...
Era tão simples alcançá-las e arrumá-las todas dentro de mim, uma a uma...
Aqueciam-me por dentro e iluminavam cada momento dos meus dias, das minhas horas, boas ou más...
Era o tempo dos sonhos e dos sorrisos abertos e francos, de quem tudo espera, de quem tudo deseja, de quem confia tudo alcançar... mesmo as estrelas...
Era o tempo dos olhares limpos e claros como as gotas de chuva que escorriam na vidraça e que eu imaginava chorarem por não serem como eu – despida de lutos e tristezas, de desilusões e melancolias, de arrependimentos e angústias, de anseios ou sonhos por cumprir.
Agora não chove, mas, a maior parte do tempo, sinto essas gotas de chuva escorrerem, não na barreira transparente da vidraça, mas em mim... E arrefecem-me. E apagam a luz que as estrelas me ofereciam quando estavam perto... a um estender de mão... à distância de um olhar, de um sorriso...
Fecho os olhos. Abro os olhos. Volto a fechá-los, mas já não as sinto... já não estão ali...
E dentro de mim, a noite é escura e fria.
E fora de mim, a noite é escura e fria.
E o meu sorriso já não tem a franqueza dos sonhos, do amanhã ansiado, do poder de dar a volta ao mundo em cada gesto...
E o meu olhar já não alcança nada, para lá da vidraça...

Dina Cruz