Tocou o despertador. Seis e quarenta e cinco… Noite ainda. Escuridão no pequeno quarto. Sono. Preguiça. Dolência. Demasiada escuridão lá fora. Mais uma vez, não conseguira adiantar-se ao nascer-do-sol. O sol nascia sempre depois dela. A noite, essa, quando ela…
Demorou ainda. Encolheu-se e apreciou, mais um pouco, o torpor morno da cama larga. Sono agitado, turbulento, cansativo, desgastante… Olhos fechados, apenas… No escuro do quarto, as noites eram dias. Olhos fechados. Dias inteiros. E os dias, esses, por vezes noite. Saiu da cama, bela adormecida ainda.
Despiu, desajeitada, o pijama. Flores espalhadas pelo chão. Retalho ínfimo de Primavera…
Olhou de soslaio o espelho e parou por instantes. Olheiras. Eternas. Perpétuas. E rugas. Fininhas. Rugas.
A água caiu sobre o corpo ainda quente de cama e sono. Chuva tropical… Tépida cascata nos meandros da selva… Olhos fechados. O poder de fazer cessar a chuva e a torrente da cascata. Secou o corpo com o branco macio da toalha de algodão. Nuvem. Neve. Fumo. Neve no chão frio. Gotas de chuva nas costas. Um pomar de laranjeiras espalhado pelo corpo num gesto automático e inconsciente.
O espelho, de novo. Creme. Base. Rouge. Sombra. Eyeliner. Olheiras. Eternas. E rugas. Fininhas. Rugas. Uma por cada lágrima. Uma por cada sorriso. Uma por cada alegria. Uma por cada desgosto. Uma por cada aventura. Uma por cada amor. Cada uma dela. Todas dela… Ansiadas. Desejadas. Dela, todas.
Meias pretas. Vestido preto. Sapatos pretos. Baton. Casaco? Vermelho. Cravo. Papoila. Sangue. Rubi. Sangue. Vida.
Abriu e fechou a porta do frigorífico. Leite. Simples. Frio. De um gole. E café. Forte, curto, amargo. Saiu.
Acendeu o vermelho. Era para peões. Peças de xadrez em história aos quadradinhos. Verde. Calcou o acelerador. Seguiu. Acendeu um cigarro distraído e sorveu-o lentamente… De vidro aberto. O ruído da cidade lá fora. O rádio. Passou pelos lugares do costume. Deixou abandonado lugar de estacionamento habitual. Seguiu. Seguiu em frente. Alheia à cidade que fervilhava de cheiros, cores, ruídos… Em direcção ao mar…
O mar. Imenso azul. Misterioso. Infinito. Lar de sereias e monstros marinhos. Lendas. Mitos. Marinheiros e piratas. Castelos de areia. Melodias de búzios. Estrelas sem luz. Conchas. E o murmúrio embalador das ondas na areia macia da praia. E aquele cheiro salgado e fresco. O odor de terras longínquas e desconhecidas. De ilhas desertas. De glaciares montanhas brancas mundos de fadas e anjos… Sapatos pretos perdidos na areia. Os pés descalços na frescura das ondas. O sabor a sal nas mãos, nos lábios… O corpo enrolado numa vaga. A areia a picar-lhe a pele. Uma força a seduzi-la, a levá-la. E o sal a entrar-lhe na boca, nos olhos, nos poros da pele… Sabor de vida. Sabor de morte. Um turbilhão de histórias. De memórias. De desejos. De anseios. Lá atrás, a cidade que já não via nem ouvia. Só o mar… O mar e os seus pensamentos e toda a sua vida passada… Mais do que isso, silêncio… Um silêncio devastador, reparador, assustador, avassalador… No meio das vagas, do sal, do azul profundo…
Um ruído longínquo entrou-lhe, mansamente, pelos ouvidos. Um grito. Um choro. Um gemido. Um suspiro… Um som que a ergueu do meio das ondas e lhe secou a pele e as lágrimas de sal. Uma voz que a despertou daquele sonho negro e azul. E foi-se o sal, a água, a areia, o azul, o ruído monótono e seco da cidade.
- Mãe…
E o mundo inteiro a entrar-lhe pelo quarto dentro. Todos os raios de sol ali. Todas as fases da lua que era sua. O mar inteiro a refrescar-lhe a alma…
-Mãe…
Acolheu-a no pequeno jardim do seu pijama-Primavera de flores. Afagou-lhe o cabelo e beijou-a ternamente num abraço de sol e sal e mar e estrelas e aberto luar. E ficaram as duas enroscadas num beijo quente de fusão perfeita.
- Sim, meu amor…
- Ensinas-me a jogar à macaca, mãe?
-Ensino, amor. Se ainda me lembrar…
E no calor terno do ninho, jogaram as duas... Salto, salto, salto, volta, salto, salto…
Mar, ondas, espuma branca, areia macia, sal no corpo, nas mãos, nos lábios, nos olhos. Sal na vida. Sal da vida.
Salto, salto, salto, volta, salto, salto, volta…
Mulher menina. Menina mulher. Mulher menina mãe.
Dina Cruz
Demorou ainda. Encolheu-se e apreciou, mais um pouco, o torpor morno da cama larga. Sono agitado, turbulento, cansativo, desgastante… Olhos fechados, apenas… No escuro do quarto, as noites eram dias. Olhos fechados. Dias inteiros. E os dias, esses, por vezes noite. Saiu da cama, bela adormecida ainda.
Despiu, desajeitada, o pijama. Flores espalhadas pelo chão. Retalho ínfimo de Primavera…
Olhou de soslaio o espelho e parou por instantes. Olheiras. Eternas. Perpétuas. E rugas. Fininhas. Rugas.
A água caiu sobre o corpo ainda quente de cama e sono. Chuva tropical… Tépida cascata nos meandros da selva… Olhos fechados. O poder de fazer cessar a chuva e a torrente da cascata. Secou o corpo com o branco macio da toalha de algodão. Nuvem. Neve. Fumo. Neve no chão frio. Gotas de chuva nas costas. Um pomar de laranjeiras espalhado pelo corpo num gesto automático e inconsciente.
O espelho, de novo. Creme. Base. Rouge. Sombra. Eyeliner. Olheiras. Eternas. E rugas. Fininhas. Rugas. Uma por cada lágrima. Uma por cada sorriso. Uma por cada alegria. Uma por cada desgosto. Uma por cada aventura. Uma por cada amor. Cada uma dela. Todas dela… Ansiadas. Desejadas. Dela, todas.
Meias pretas. Vestido preto. Sapatos pretos. Baton. Casaco? Vermelho. Cravo. Papoila. Sangue. Rubi. Sangue. Vida.
Abriu e fechou a porta do frigorífico. Leite. Simples. Frio. De um gole. E café. Forte, curto, amargo. Saiu.
Acendeu o vermelho. Era para peões. Peças de xadrez em história aos quadradinhos. Verde. Calcou o acelerador. Seguiu. Acendeu um cigarro distraído e sorveu-o lentamente… De vidro aberto. O ruído da cidade lá fora. O rádio. Passou pelos lugares do costume. Deixou abandonado lugar de estacionamento habitual. Seguiu. Seguiu em frente. Alheia à cidade que fervilhava de cheiros, cores, ruídos… Em direcção ao mar…
O mar. Imenso azul. Misterioso. Infinito. Lar de sereias e monstros marinhos. Lendas. Mitos. Marinheiros e piratas. Castelos de areia. Melodias de búzios. Estrelas sem luz. Conchas. E o murmúrio embalador das ondas na areia macia da praia. E aquele cheiro salgado e fresco. O odor de terras longínquas e desconhecidas. De ilhas desertas. De glaciares montanhas brancas mundos de fadas e anjos… Sapatos pretos perdidos na areia. Os pés descalços na frescura das ondas. O sabor a sal nas mãos, nos lábios… O corpo enrolado numa vaga. A areia a picar-lhe a pele. Uma força a seduzi-la, a levá-la. E o sal a entrar-lhe na boca, nos olhos, nos poros da pele… Sabor de vida. Sabor de morte. Um turbilhão de histórias. De memórias. De desejos. De anseios. Lá atrás, a cidade que já não via nem ouvia. Só o mar… O mar e os seus pensamentos e toda a sua vida passada… Mais do que isso, silêncio… Um silêncio devastador, reparador, assustador, avassalador… No meio das vagas, do sal, do azul profundo…
Um ruído longínquo entrou-lhe, mansamente, pelos ouvidos. Um grito. Um choro. Um gemido. Um suspiro… Um som que a ergueu do meio das ondas e lhe secou a pele e as lágrimas de sal. Uma voz que a despertou daquele sonho negro e azul. E foi-se o sal, a água, a areia, o azul, o ruído monótono e seco da cidade.
- Mãe…
E o mundo inteiro a entrar-lhe pelo quarto dentro. Todos os raios de sol ali. Todas as fases da lua que era sua. O mar inteiro a refrescar-lhe a alma…
-Mãe…
Acolheu-a no pequeno jardim do seu pijama-Primavera de flores. Afagou-lhe o cabelo e beijou-a ternamente num abraço de sol e sal e mar e estrelas e aberto luar. E ficaram as duas enroscadas num beijo quente de fusão perfeita.
- Sim, meu amor…
- Ensinas-me a jogar à macaca, mãe?
-Ensino, amor. Se ainda me lembrar…
E no calor terno do ninho, jogaram as duas... Salto, salto, salto, volta, salto, salto…
Mar, ondas, espuma branca, areia macia, sal no corpo, nas mãos, nos lábios, nos olhos. Sal na vida. Sal da vida.
Salto, salto, salto, volta, salto, salto, volta…
Mulher menina. Menina mulher. Mulher menina mãe.
Dina Cruz
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